(entrevista que participei para a revista VivaSaúde n.155, março/2016)
VS – Qual o impacto do aborto na vida da mulher?
D – Em geral, durante a gestação, a mulher já vai construindo seu lugar de mãe e vai criando diversas expectativas em relação ao futuro do filho. Portanto, o vínculo com o filho começa a ser criado na gestação. A perda gestacional por um aborto espontâneo está atrelada também à morte dessas expectativas, do papel de mãe que não foi ocupado. Nessa situação, então, a mulher costuma iniciar um processo de luto. É o luto por uma perda diferente, porque se trata de um filho cuja vida foi curta. E não importa que ela tenha outros filhos ou se virá a ter outros filhos no futuro, ela sofre a perda de um de seus filhos. Não há como substituir um filho, assim como não há como substituir uma mãe ou um pai falecidos. Então, muitas mulheres desenvolvem depressão, sentem culpa, angústia, medo de abortar novamente, de ser punida, de falar sobre o ocorrido.
VS – Quais são as estratégias de enfrentamento?
D – Como estratégia de enfrentamento, é muito útil que a mulher compartilhe sua dor com quem esteja disponível para dar acolhimento, como o marido, pessoas próximas, outras mulheres que passaram pela mesma experiência, um psicoterapeuta. Ela precisa saber que as pessoas evitam falar sobre aborto espontâneo, por isso a mulher pode ter dificuldade de encontrar alguém com quem se sinta à vontade de compartilhar sua dor. É importante procurar pessoas que demonstrem sentir pelo ocorrido, que escutem e não fiquem emitindo opiniões e relatando outras experiências que não retratam a dor única que essa mulher sente. Falar sobre a dor ajuda a tomar consciência da morte e a ter mais clareza dos sentimentos e pensamentos. Aos poucos, o processo de luto vai avançando até chegar na reorganização da vida sem aquele filho. Isso não significa o esquecimento da morte do bebê, e sim o desenvolvimento da capacidade de tocar a vida sem este filho.
Outra estratégia útil é fazer um ritual de despedida, como escrever uma carta para o filho falecido ou qualquer outra cerimônia que faça sentido para os pais. O ritual pode auxiliar bastante na elaboração do luto por facilitar a assimilação da perda e a expressão da dor.
VS – De que forma a mulher que aborta deve ser acompanhada? Onde ela deve encontrar suporte?
D – O fundamental para a mulher enlutada é receber acolhimento e orientação de pessoas empáticas, sejam elas da família, amigos ou profissionais da saúde. Com a psicoterapia, a mulher pode receber um acompanhamento que facilite a elaboração do luto através de uma escuta empática e de um olhar atento aos riscos do desenvolvimento de disfunções nos níveis psicológico e relacional. A terapia de família pode ser útil quando o aborto afeta o pai do bebê e outros filhos e quando é necessário mobilizar os membros da família para auxiliar a mulher no enfrentamento da dor.
VS – Como lidar com a culpa, com a raiva e com a frustração de ver o sonho de ser mãe interrompido?
D – A mulher pode sentir culpa por questões culturais, como não cumprir o mandato social de gerar um filho saudável e de desempenhar a função maternal de proteger e nutrir o filho. Pode também sentir culpa por não ter planejado e desejado a gravidez e pela possibilidade de não ter cuidado bem da gestação. A culpa é um sentimento de punição por descumprimento de um dever, muitas vezes social, que impede a pessoa de aceitar a si própria. Para sair do sentimento de culpa, a mulher precisa olhar para a realidade da gestação sem julgamentos e sem exigências, sair da prepotência do controle que leva a acreditar que tudo sairá do jeito que espera e aceitar as limitações do próprio corpo.
Esse processo de responsabilização ajuda na elaboração da perda, enquanto culpar a si e a outros impede a integração dessa experiência à própria estória e dificulta a consequente superação da dor pela perda gestacional. Responsabilizar-se é assumir o risco do aborto e incluir esse fato marcante em sua estória. Dessa maneira, pode evitar a raiva decorrente da tentativa de encontrar um culpado para seu sofrimento.
Com a aceitação do aborto através desse exercício de olhar para esta morte sem julgamentos, a frustração pelo sonho interrompido também se dissolve. Quando estiver se sentindo mais fortalecida, ela pode escolher engravidar novamente para tentar realizar o sonho de ter um filho.
VS – Como lidar com o medo de abortar novamente?
D – Após a superação da perda, a mulher pode ter o desejo de voltar a engravidar mas ter o medo do abortamento. Nesse caso, oriento que ela procure um médico com quem possa estabelecer uma relação de confiança e receber informações mais consistentes sobre os riscos de um novo aborto. Assim, ela vai poder se sentir mais confiante e fortalecida para decidir por uma nova gravidez ou não.
VS – Qual deve ser o papel do parceiro?
D – É importante que o parceiro esteja aberto para escutar a mulher, respeitando-a no seu processo de luto, isto é, permitindo que ela tenha momentos de choro, desânimo, tristeza, desespero, culpa. E se ele compartilhar seu sofrimento com a parceira, eles poderão ficar mais próximos. Ela poderá se sentir menos solitária por saber que o pai também está fragilizado e, assim, um poderá cuidar do outro. Ter a consciência de que o processo de luto pode durar alguns anos também pode ajudar o casal a ter paciência consigo e com o outro. Da mesma forma que a mãe precisa evitar a culpabilização, o parceiro também precisa compreender que não há culpados pelo aborto e se responsabilizarem pelo ocorrido como uma situação possível para a gestante. O aborto gera um risco sério de separação do casal, por isso essa cumplicidade é fundamental para que consigam superar as dificuldades juntos.
VS – No caso da mulher que decide interromper uma gestação indesejada, como deve ser seu acompanhamento?
D – A interrupção da gestação indesejada é um procedimento legal no nosso país em caso de estupro ou quando há riscos graves à vida do bebê ou da mãe. Nesses casos, a mulher deve ser acompanhada por um médico. Caso pense em praticar o aborto induzido e ilegal chamado de aborto inseguro, é fundamental que se informe sobre os riscos de provocar um aborto sem o ambiente e acompanhamento médico adequados. No nível relacional, a mulher precisa saber que o bebê abortado sempre fará parte da família, pois ele de fato existiu. A exclusão de um membro provoca uma compensação pelo sistema familiar através de sintomas. Então, a exclusão desse membro da família poderá causar menor impacto para todo o sistema familiar se a mãe e os demais membros fizerem o movimento contrário, o movimento de inclusão, ou seja, reconhecer profundamente a existência daquele bebê como parte da família.
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