O artigo “Em defesa da família tentacular” da psicanalista Maria Rita Kehl oferece uma interessante leitura sobre o mal estar que nos assola quando estranhamos os novos arranjos familiares. É um artigo extenso, mas muito esclarecedor. Você pode ter acesso a ele aqui. Para os que não podem ou não querem ler o artigo todo, destaco, a seguir, algumas questões levantadas por ela.

A família nuclear “normal”, monogâmica, patriarcal e endogâmica não é tão antiga nem mesmo atual. Predominou entre o início do século XIX a meados do século XX no ocidente para atender às necessidades da sociedade burguesa emergente. Estudos demográficos provam que esse padrão de família está em constante transformação no Brasil. Maria Rita Kehl lembra que “o poder está sendo distribuído de forma mais igualitária: entre o homem e a mulher mas também, aos poucos, entre pais e filhos”. A redefinição hierárquica surge na família, sobretudo, com a inserção das mulheres no mercado de trabalho e sua emancipação financeira. Essa autonomia proporcionou condições favoráveis para que as mulheres decidam pela separação conjugal, de modo que aumentou o número de divórcios e as separações. Elas têm investido mais em sua escolaridade e, por consequência, têm prorrogado a idade em que se casam. Com isto e com a liberdade sexual conquistada pelas mulheres, houve um aumento do número de relações conjugais não legalizadas entre jovens. Aumentou também o número de mães solteiras e de gravidez não programada entre as adolescentes. Vemos surgir cada vez mais as famílias recasadas, em que coabitam filhos de diferentes famílias de origem. Os irmãos têm criado vínculos cada vez mais fortes e se tornam mais estáveis do que os laços com adultos. Sem deixar de falar nos casais homoafetivos que adotam crianças, mas que ainda têm lutado para adquirir o direito do casamento e de constituir uma família.

Assim, “a família deixou de ser uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e precário, regido pela lei menos confiável entre os humanos: a lei dos afetos e dos impulsos sexuais”. Esses novos arranjos familiares trazem um mal estar oriundo da “dívida que nos cobramos ao comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais (…) A família mudou, mudaram os papéis familiares, mas não foi substituída por outra forma de organização molecular. Como ocorre com todos os bens sujeitos à escassez, parece que hoje a família nuclear em vias de extinção tem sido mais valorizada e idealizada do que nunca, criando uma dívida permanente e impagável que pesa sobre os membros das famílias que se desviam do antigo modelo”.

Ela traz importantes questionamentos sobre essa dívida e o consequente desamparo e mal estar que sentimos quando comparamos as novas configurações de família com a família nuclear que durou menos de dois séculos:

“Será que a sociedade seria mais saudável se ainda se mantivesse organizada nos moldes das grandes famílias rurais, a um só tempo protegidas e oprimidas pelo patriarca da casa grande que controlava a sexualidade das mulheres e o destino dos varões? Temos saudade da família organizada em torno do patriarca fundiário, com sua contrapartida de filhos ilegítimos abandonados na senzala ou na colônia, a esposa oficial calada e suspirosa, os filhos obedientes e temerosos do pai, dentre os quais se destacariam um ou dois futuros aprendizes de tiranete doméstico? (…) Ou será que temos saudade da família emergente das classes médias urbanas, fechada sobre si mesma, incestuosa como em um drama de Nelson Rodrigues, temerosa de qualquer contágio com membros da camada imediatamente inferior, mantidos à distância às custas de preconceitos e restrições absurdas? Saudades das famílias “de bem” que viviam atemorizadas em relação aos próprios vizinhos, com medo de cada nova fase da vida, apavoradas com a sexualidade dos filhos e filhas adolescentes – maledicentes e invejosas da vida alheia, administrando a vida conjugal como se administra um pequeno negócio? Saudades dos casamentos induzidos a partir de namoros quase endogâmicos, rigorosamente restritos a “gente do nosso nível” e mantidos as custas da dependência econômica, da inexperiência sexual e da alienação das mulheres?”

É um artigo que pode nos levar a olhar para as novas configurações familiares com menos desqualificação e com mais atenção ao preço que pagaríamos pelo resgate do antigo modelo de família, ao mesmo tempo que nos ajuda a pensar nas fragilidades da família contemporânea.

(A imagem deste post é uma foto da igreja Sagrada Família, projeto arquitetônico de Gaudí que conquistou a admiração de muitas pessoas com sua inovação e criatividade, mesmo se tratando de uma igreja que leva a “família” no seu nome)

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