Maria José queria “desenhar” o próprio nome, mas foi logo repreendida por sua mãe, como podemos ver no início do curta-metragem “Vida Maria” (veja aqui). Esse gesto materno carrega crenças e mitos sobre o que é a vida, qual o papel da mulher, qual a utilidade da educação, as dificuldades de viver na caatinga cearense, entre outros aspectos daquele contexto. Aposto que essas crenças não foram criadas pela mãe de Maria José. Foram herdadas de seus pais, que herdaram dos pais e de seus pais, e assim por diante, perpetuando a repetição daquela realidade.
Assim como Maria José, utilizamos essas lentes chamadas “crenças” e “mitos” para enxergar o mundo de determinadas formas.
Nossos pais nos emprestaram essas lentes porque precisávamos de um modelo de como estar na vida com cuidado e proteção. A mãe de Maria José, a partir do melhor que poderia oferecer a sua filha, diz a ela que “desenhar nome” é perda de tempo, uma atividade inútil. A animação também mostra como Maria José transmite a mesma crença para sua filha Maria Lurdes e revela uma transmissão que percorreu muitas gerações através de diversas Marias. Essa transmissão multigeracional constrói padrões familiares que realizam a profecia de que o “fruto não cai longe da árvore”.
Podemos fazer bom uso da herança recebida de nossos pais e também podemos ficar presos às heranças disfuncionais, sem tomar consciência dos nossos padrões familiares. Podemos também ficar presos a lealdades invisíveis, termo utilizado por Boszormenyi-Nagy & Spark (1973) para referirem ao fenômeno em que a pessoa, para se sentir pertencida ao grupo familiar, interioriza as expectativas da família, de forma não consciente, e passa a cumprir esses mandatos. São expectativas não explícitas cujo descumprimento costuma provocar culpa, como se houvesse uma dívida com os pais. São forças familiares que restringem a liberdade dos seus membros e dificultam o processo de diferenciação da família de origem. O que aconteceria com Maria José se não obedecesse a mãe? Qual preço pagaria? E qual o preço pagou por cumprir o mandato familiar?
Segundo a escala de diferenciação de Murray Bowen (1991), quando o indivíduo alcança um ótimo nível de diferenciação da sua família de origem, pode seguir seus princípios, estar seguro de suas opiniões e convicções, sem ser dogmático nem rígido em seu modo de pensar. Sabe escutar e apreciar os pontos de vista dos demais, abrir mão de velhas crenças e abraçar crenças novas. É capaz de respeitar a si mesmo e a identidade dos demais sem fazer críticas. Assume total responsabilidade de si mesmo e de suas ações frente à família e à sociedade.
Podemos dizer que esse ótimo nível de diferenciação corresponde à metáfora de poder escrever o próprio nome, construir a própria identidade com bastante liberdade. E você pagaria ou já paga o preço para poder escrever o próprio nome?
Fontes:
BOSZORMENYI-NAGY, I.& SPARK, G (1973) Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu Editores.
BOWEN, M (1991) De la família al indivíduo. Buenos Aires: Ediciones Paidos.
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